Distopia nacional 3% e o que poderia ser e não é

Quando anunciaram que a Netflix produziria uma série brasileira, todo mundo vibrou. A plataforma tem produzido séries excelentes e com uma qualidade que deixa muitos canais no chinelo. A série brasileira é baseada nos pilotos disponíveis no Youtube que pareciam bem promissores. Infelizmente, o que a Netflix nos mostrou não compete com outras produções da plataforma.




A séria nos mostra um lugar distópico, onde a maioria da população vive em um ambiente pobre, com pouca comida e água, uma relação direta com as favelas brasileiras. E aos 20 anos as pessoas vão para uma prova onde apenas 3% delas é aprovada para ir até Maralto, um lugar utópico, sem doenças ou pobrezas, sem desigualdades, ou é o que parece em um primeiro momento.

Você é o criador do seu próprio mérito.

Ezequiel

Entre as pessoas que vão tentar essa espécie de vestibular estão os membros da Causa, um movimento cujos objetivos não ficam evidentes durante os episódios, mas a gente imagina que seja o de derrubar o sistema. Os testes para uma pessoa ser aprovada para Maralto são bastante rigorosos. E apesar de ver muita gente por aí comparar com Jogos Vorazes e Divergente, 3% é igual à trilogia O Teste, de Joelle Charbonneau. Em O Teste, os personagens também têm esse vestibular from hell de 3%.

Mas o que estava funcionando nos pilotos do Youtube não funcionou na produção da Netflix. A começar pelas atuações. Não sei exatamente qual foi a orientação que os atores receberam, mas fiquei com a nítida impressão de ver uma novela da Globo e não uma série distópica. Os diálogos são em geral pobres e didáticos demais. Apenas dois personagens se destacam: Rafael (Rodolfo Valente), moralmente ambíguo e muito inteligente, e Joana (Vaneza Oliveira), muito esperta e observadora, tentando fugir do passado. Não estou dizendo que novelas são ruins, apenas a atuação em uma novela é diferente de um filme, que é diferente de uma série. Os atores não conseguiram transitar entre um gênero e outro.

Mesmo tendo nomes de peso, como Zezé Motta e Sérgio Mamberti, o trabalho da maioria deles ficou bem abaixo de várias produções da Netflix. O figurino da parte pobre do enredo não tinha lógica, era sem pé nem cabeça. Já a ambientação do local dos testes é futurista, clean, condiz com a proposta (me fez lembrar o filme de Aeon Flux).

Havia muito potencial para se discutir várias coisas. Vemos pinceladas de críticas sociais, que é uma característica das distopias, que pegam problemas atuais e o exageram para que possamos enxergá-los. Por exemplo, a protagonista, Michelle (Bianca Comparato) é pendurada em um pau de arara, em uma clara referência à ditadura. O personagem Fernando (Miguel Gomes), que é cadeirante, recusa ajuda de outros candidatos, porque quer mostrar que pode chegar lá por seus esforços e que até uma possibilidade de voltar a andar não lhe agrada tanto assim, já que ele conseguiu chegar até onde chegou na cadeira. E apesar de termos um elenco com várias mulheres e negros, a diversidade para por aí, sem diversidade de corpos ou de sexualidade.


A esposa do vilão Ezequiel (João Miguel) sofre com uma decisão que tomou depois de aprovada nos 3% e afunda em uma depressão. E no final, o último passo para o aprovado ser, de fato, membro dos 3% (e que não vou revelar, obviamente), poderia gerar uma excelente discussão sobre desigualdades sociais e eugenia. Mas na verdade, tudo foi tratado de maneira extremamente superficial. Eles não aprofundam as discussões, não conseguem concluir nem aprofundar nenhuma delas.

Estamos muito acostumados a ver distopias - e a ficção científica em si - de uma perspectiva estrangeira. Neste caso, 3% tem seu mérito, que é o de mostrar uma distopia do ponto de vista brasileiro. E diferente de Jogos Vorazes ou Divergente, os jovens em 3% vão de boa vontade para o processo de escolha. Aliás, todo o processo é visto com um certo ar místico por causa do casal original que criou a divisão social e que estipulou os testes para serem o mais justo possível. Você só passa para o outro lado por mérito. Mas bem vemos que não é tão justo assim quando gente que claramente trapaceou e roubou os colegas chega até o final.

A Netflix já assinou para uma segunda temporada e torço do fundo do coração que os problemas sejam resolvidos. Uma distopia brasileira, com nossas perspectivas e atores traria excelentes discussões e engrandeceria a ficção científica nacional. A trilha sonora é ótima e a crítica à meritocracia é bastante evidente. Falta apenas resolver todos os outros problemas e aí teremos uma distopia que nos representa.

Até mais!

Leia também:
Buzzfeed - 36 curiosidades que precisa saber antes de ver a série “3%”

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Comentários

  1. Fiquem sem palavras pras roupas rasgadas artisticamente do povo do Continente. Ficou falso demais aquilo! Fora que a mastigação do enredo na verdade demonstra uma falha de roteiro, achei a série fraca embora os episódios finais não sejam de todo ruim. Na verdade eles tentaram abraçar tudo ao mesmo tempo que existe em uma distopia, e no fim não abraçam nada. Tem muita coisa difícil de engolir na série, embora ela não seja de todo mal. Vamos esperar que elas abram um precedente pra produções melhores né?

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