Resenha: A Guerra Não Tem Rosto De Mulher, de Svetlana Aleksiévitch

Este foi um livro muito difícil de ler. O conteúdo é muito intenso, pois são as memórias das veteranas da Segunda Guerra Mundial (ou a Grande Guerra Patriótica, como era chamada na União Soviética). Adolescentes, mães, irmãs, esposas, se alistaram, alguma fugindo de casa, juntando-se às forças armadas soviéticas para impedir o avanço nazista. E as memórias delas são absolutamente vívidas e sangrentas. Outros livros da Svetlana já resenhados aqui são O fim do homem soviético e As últimas testemunhas.

Este é mais um livro do Desafio Literário 2016! Indicação da Manu Najjar, do blog A Garota da Biblioteca!

O livro
A vila da minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.

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Tudo o que sabemos sobre a guerra conhecemos por uma ❝voz masculina❞. Somos todos prisioneiros de representações e sensações ❝masculinas❞ da guerra. Das palavras "masculinas". Já as mulheres estão caladas. Ninguém, além de mim, fazia perguntas para minha avó. Para minha mãe. Até as que estiveram no front estão caladas.

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Vou dizer o seguinte: sem ser mulher não dá para sobreviver na guerra.

Svetlana não queria a história cânone da guerra. Ela queria as sensações, as dores, os cheiros, o dia a dia das pessoas que viveram lá. E uma coisa que ela percebeu é que as mulheres não eram ouvidas, mesmo que a Rússia estivesse repleta de veteranas condecoradas, elas não eram ouvidas nem suas histórias escritas. Algumas já estavam idosas e queriam esquecer o que viveram, mas muitas outras concordaram em conversar com a autora.

Resenha: A Guerra Não Tem Rosto De Mulher, de Svetlana Aleksiévitch

Elas eram atiradoras de elite, desarmadoras de minas terrestres e bombas, enfermeiras, médicas e cirurgiãs de campo, pilotas, operadoras de artilharia anti-aérea, oficiais de comunicação, partisans (membros de resistência armada que operavam atrás das linhas inimigas em atos de sabotagem). Algumas iam combater com os filhos nas costas ou escondiam bombas entre as roupas e os brinquedos das crianças. Outras combateram ao lado de maridos e irmãos. Somente Lyudmila Pavlichenko, atiradora de elite, tem 309 mortes no currículo. Seu apelido era Lady Death.

Svetlana encontrava essas mulheres, geralmente, em seus apartamentos. Eram contadoras, professoras de jardim de infância, secretárias, mas que viveram na lama e no caos durante a guerra. E era difícil contar o que viveram. Como elas precisavam abandonar as feminilidades, cortar tranças e seus longos cabelos, usar cuecas e coturnos tamanho 42 porque o exército não fornecia roupas para as combatentes. Como elas marchavam e deixavam um rastro de sangue por não terem absorventes e precisavam roubar as camisetas dos colegas homens para tentar improvisar um. Algumas menstruavam pela primeira vez no front e achavam que estavam feridas.

Os relatos são bem assustadores. Encontraram uma mulher na estrada e ela contava que os nazistas usaram seus filhos como alvo de tiro. Ela foi obrigada a arremessar seu bebê para o alto para um oficial nazista acertar. Enfermeiras franzinas carregaram feridos para os hospitais de campo pesando mais de 80 quilos, dezenas de vezes ao dia. E precisavam carregar com o equipamento completo, inclusive a arma e munição. Os mortos eram tantos que muitas vezes era preciso fazer valas comuns.

É como se diz: na guerra você é metade humano, metade animal... É assim. De outra forma não se sobrevive. Se você for só humano, não sai vivo.

Liubov Ivánova Liúbtchik, comandante do pelotão de fuzileiros

Piolhos, pulgas, lama, sangue. O sangue impregnava tudo. As fardas ficavam duras, engomadas de sangue. E muitas não tinham outra muda de roupa para trocar, precisavam marchar daquela forma e ficar nas trincheiras, o que gerava bolhas e assaduras. Algo que a autora notou é que se junto da veterana estivesse algum parente ou conhecido, especialmente homem, elas costumavam ser menos sinceras nos relatos. Quanto mais gente ouvia o relato, mais cautelosa era a versão dela.

Os relatos são curtos a médios, alguns mais longos. Uns são anônimos ou a narradora pediu que seu sobrenome não fosse publicado. Elas choram, algumas pedem para parar de falar, outras se recusaram totalmente a conversar. Muitas relatam como os homens eram condescendentes e zombavam de ver mulheres liderando esquadrões ou metralhadoras. Alguns se recusaram a casar com companheiras de front, por não considerá-las mulheres. Quando elas voltavam para casa, muita gente ainda tinha preconceito, não queriam que seus filhos casassem com uma mulher marcada pela guerra.

Minha guerra tem três cheiros: sangue, clorofórmio e iodo... Ah! As feridas... Largas, profundas, rasgadas... Era de ficar louca. Estilhaços de bala, granada, projéteis na cabeça, nos intestinos, em todo o corpo - junto com metal tirávamos do corpo dos soldados: botões, pedaços de capote, guimnastiorki, cintos de couro. (...) À noite, tínhamos sangue no cabelo; atravessava o avental e chegava no corpo, grudava no gorro e na máscara. Um sangue negro, viscoso, misturado com tudo o que existe dentro de um ser humano. Com urina, fezes...

Obra e realidade
Estudei as grandes guerras mundiais na faculdade e os relatos que li eram, em geral, sobre as grandes batalhas, as decisões de presidentes, chanceleres, generais, mas a história do dia a dia de uma guerra nunca estava nos livros. Em alguns filmes é possível ver o dia a dia de soldados, pilotos e francoatiradores e seus atos heróicos. Um filme de que gosto muito é Falcão Negro em Perigo, mas ele não tem uma mulher na luta em Mogadíscio. Outros filmes de guerra também não mostram mulheres.

Ler este livro mostrou a crueza da guerra de tal forma que eu precisava parar a leitura de vez em quando, pois são relatos vívidos e cruéis, aquelas coisas diárias de um pelotão, o convívio com a morte, a dor e a saudade de casa, a perda dos arquétipos femininos, a superação, o reconhecimento da mulher como um igual e como isso era difícil, como isso as marcava para sempre.

Svetlana Aleksiévitch

A vida de muitas dessas mulheres ficou bem difícil com o fim da guerra. O governo praticamente as abandonou depois de um tempo e subir na hierarquia era muito difícil. Cerca de 800 mil mulheres serviram na Segunda Guerra Mundial na União Soviética. A mídia pouco falava do papel delas e seus esforços chegaram a ser minimizados, mas como eram muitas veteranas, finalmente o estado soviético começou a dar a elas o reconhecimento devido. Mas havia vários relatos de estupros, doenças sexualmente transmissíveis, assédio, violência e gestações resultantes de estupros entre as fileiras.

Pontos positivos
Escrito por mulher
Relatos de mulheres sobre a guerra
Vívido e intenso
Pontos negativos
Violência


Título: A Guerra Não Tem Rosto De Mulher
Título original: У войны не женское лицо (War Does Not Have a Woman's Face)
Autora: Svetlana Aleksiévitch
Tradutora: Cecília Rosas
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 392
Ano de lançamento: 2016
Onde comprar: na Amazon



Avaliação do MS?
O livro tem relatos violentos, tem dor, sangue... Mas é isso o que uma guerra sempre traz. E se isso está sempre ausente dos livros de história, Svetlana conseguiu traduzir a Segunda Guerra Mundial como nenhum filme ou livro já fez. E às vezes a gente só entende quando sente esses relatos há tanto tempo guardados. Poucas coisas que li foram tão intensas quanto este livro. Livro obrigatório!

Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Está na minha lista! Eu li o Vozes de Tchernóbil, e agora estou lendo O fim do homem soviético, ambos dela, e posso dizer que são marcantes também. No Vozes fica claro que a humanidade não deixou de existir por puro milagre! (E isso é até hoje!). Mas o que mais me marca nos livros dela é como você parece estar ouvindo a pessoa falar na sua frente! E desmistificando tudo que se vê na mídia. Ainda sobre os russos, li também Limonov, que é muito bom se você quer entender a Rússia e descobrir que eles, na verdade, detestam o capitalismo!
    Bom, esse já estava na fila, com a sua recomendação, fica só a vontade de lê-lo o quanto antes!

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    Respostas
    1. Qualquer coisa que essa mulher publica é tiro! =D

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    2. Acho que de longe posso considerar esse livro a minha melhor leitura em 2016. :-D

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  2. Agradecida por compartilhar a leitura, ainda vou ler a obra, mas sua resenha me fez ter mais vontade ainda!

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