Crianças no porão

Omelas

Deixam Omelas para trás, seguem em frente para a escuridão e nunca voltam. O lugar para onde vão é um lugar mais difícil ainda de imaginar para a maioria de nós do que a cidade da alegria. Não consigo descrevê-lo em absoluto. É possívle que nem exista. Mas eles parecem saber para onde estão indo, aqueles que abandonam Omelas.



👉🏼 Você pode ler o conto de Ursula no site da Morro Branco, pelo projeto Cápsula!

Omelas é uma cidade maravilhosa. Utópica. Funcional. As pessoas vivem no bem bom, são todos muito cultos e inteligentes, as artes, a ciência, a intelectualidade, tudo ali é patrocinado, incentivado. As pessoas são impulsionadas a dar o seu melhor, pois não há preocupações na vida. Tudo pode ser conseguido.

Uma cidade de felicidade eterna. Um mundo justo, um mundo completo, onde você não precisa de nada, apenas melhorar a si mesmo, apenas conviver com outras pessoas em harmonia. Todas as suas necessidades são satisfeitas, você vai a festivais, recitais, é feliz. Você é livre da tirania, de reis e presidentes, pois todos têm as mesmas oportunidades. Até que complete uma determinada idade, que é quando você descobre porque Omelas é tão próspera e maravilhosa.

Entre os oito e doze anos, você é levado para ver o motivo da boa-venturança de Omelas. Para que a cidade incrível se mantenha, para que sua vida seja incrivelmente sadia e plena, uma criança precisa viver na miséria, infeliz, na escuridão, presa na sujeira, nos porões da cidade, em uma salinha sem janelas. É este o segredo da cidade que a mantém funcionando.

As pessoas, em geral, ficam indignadas com aquilo, claro. Como podem deixar uma criança viver daquela forma? Que pessoas sem alma e ignóbeis são aquelas que deixam uma criança ser explorada desta maneira e nada fazem? E ainda mostram para as pessoas!

Opa. Então se a criança permanecesse escondida o tempo todo, tava de boa?

As pessoas ficam indignadas, mas algumas acabam aceitando a situação. "Bem, é a vida, né?", e continuam vivendo plenamente, como se aquilo não lhes dissesse respeito. Outras, por sua vez, arrasadas pela descoberta, preferem deixar Omelas a ter que dever sua felicidade e estabilidade às custas de uma criança inocente. São estes os que se afastam de Omelas.

Este conto da Ursula K. LeGuin foi ganhador do Hugo Awards e já foi amplamente discutido em várias áreas, tanto na literatura quanto na sociologia. Ele traz ensinamentos muito importantes sobre a benevolência humana, sobre a empatia, sobre a caridade e sofrimento humanos.

Quem seria você? Você se afastaria de Omelas? Ou aceitaria aquele sofrimento como parte da vida e permaneceria na cidade?

Antes de responder que deixaria a cidade - pois essa foi a minha resposta imediata - olhe ao seu redor. Dê uma olhada no notebook ou no smartphone por onde você está lendo esse texto. Tem certeza de que seu aparelho não está na sua mão devido ao sofrimento alheio? Será que você tem um gadget de sangue, onde as terras-raras dos microcomponentes foram extraídas de ambientes de guerra constante, como Uganda e Ruanda?

A roupa que você está usando, você tem certeza que não teve nenhuma criança boliviana ou bengali, acorrentada numa mesa, costurando essa peça? O ferro que compõe o teu carro ou o ônibus da sua cidade, será que esse ferro não veio de uma área degradada ambientalmente, que hoje está destruída pelas atividades de mineração e com isso acabou com a subsistência da população ao redor?

Tem certeza que em toda a linhagem da sua família, nunca teve uma mulher estuprada, um fazendeiro dono de escravos, um neonazista? O contrato social de Omelas é baseado no sofrimento desta criança. O nosso está tão longe disso?

Chega um determinado momento da vida da gente em que a empatia é seletiva. Massacres acontecem o tempo todo, todo o tempo, ao redor do globo, em todas as regiões. A miséria de alguns sustenta a opulência de outros e a vida segue sem que ninguém fique realmente muito indignado com isso. Algumas coisas nos afetam mais que outras, mas não dá pra colocar bandeirinha no perfil de todas as nações do mundo onde acontecem as injustiças.

Uns anos atrás eu assinei uma petição para o então ministro da agricultura, Reinhold Stephanes, para que o gado fosse tratado com mais dignidade e que não fosse transportado por longas distâncias para os frigoríficos, pois essas condições deixavam os animais estressados, doentes e infelizes. Só que eu ainda como carne... Não é hipocrisia da minha parte pedir mais dignidade para um animal que pode acabar no meu prato?

Entenda, não quero que você sinta culpa por viver como vive, mas também quero que perceba que não somos inocentes. Tal como em Omelas, nossa vida está cercada de sofrimento alheio. A exploração de outro ser humano foi necessária para produzir algo que você consome. Mas onde está esse sofrimento? A complexidade da cadeia industrial pode nos fazer pensar que as más condições dos trabalhadores nas fazendas de cacau nada têm a ver com o nosso chocolate. Mas tem.

E é isso o que chama a atenção em Omelas. Se você quer viver na opulência e no luxo, deve saber que a infelicidade e a exploração de uma criança são as responsáveis por isso. Não um milhão, não 20 milhões, apenas de uma. Uma única vida trágica nos toca muito mais do que os milhões de mortos no Holocausto ou no Genocídio Armênio. Uma morte é trágica, milhões... bem, aí é estatística.

(...) a capacidade humana para a empatia pelo sofrimento dos outros só chega a determinado ponto; a partir daí os velhos mecanismos de sobrevivência passam a funcionar, e o pensamento normal é antes ele do que eu.

Luís Filipe Silva

O conto pode ser interpretado de diversas maneiras. O capitalismo selvagem baseado na exploração, as divergência entre mundos desenvolvidos e em desenvolvimento, miséria humana alimentando a opulência, muitos com pouco, poucos com muitos. Mas Ursula não toma nenhum partido ao longo do conto, ela não nos leva pela mão para nos mostrar que manter uma criança naquelas condições é errado. Nós é que devemos percorrer o caminho e perceber.

As pessoas que decidiram viver em Omelas são ruins? Será? Ou ela apenas encontraram um meio de conviver com a noção de miséria, fome e humilhação? Não é o que todos fazemos, em maior ou menor grau? Aceitamos nosso contrato social, sabendo que têm crianças por aí quebrando castanhas, pedras, ou se prostituindo pra conseguirem um prato de comida? Nós sabemos que existem coisas erradas acontecendo, mas é a vida. Não é?

Não sabemos para onde vão as pessoas que se afastam de Omelas, para aquelas que lhe dão as costas. Ursula não nos diz. Lá fora é tudo trevas e escuridão. Cada pessoa deve trilhar seu próprio caminho, deve saber se virar. Elas escolheram deixar a cidade porque não aguentavam viver com a noção de que sua felicidade só existe porque alguém vive miserável.

Mas isso é tão diferente da nossa vida hoje? Nós vivemos em uma imensa Omelas, com milhares de crianças em porões e aceitamos viver com isso. Não somos ruins, mas também temos nossa parcela de culpa. O problema é que essas milhares de crianças não nos tocaram. Em Omelas nos toca porque é só uma. E milhares?

E milhões?

Até mais.

Este texto foi, originalmente, publicado na newsletter Diário da Capitã, exclusiva para os apoiadores do blog no Padrim. Apoie você também e faça parte da tripulação!


Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Capitã, esse é o tipo de texto que nos segue como sombra por muito tempo. Parei de consumir vários produtos oriundos de empresas que se portam como carniceiros, e incentivo quem eu conheço a fazer o mesmo, mas fica sempre a sombra soprando por sobre o ombro: "Só isso? Isso é o suficiente pra deitar a cabeça e dormir em paz?" Creio que uma das ferramentas mais poderosas, hoje, para que isso diminua e talvez suma, amanhã, é a educação dos nossos pequenos. O que não podemos fazer é deixar o assunto morrer, é conversar, compartilhar e tomar as pequenas atitudes no dia a dia, ah, e o mais importante... nunca ficar esperando que um herói, um messias, venha para começar uma mudança que deve partir de cada um.

    ResponderExcluir
  2. O título diz aqueles que se afastam e não os que estão fora, afinal omelas é a sociedade e por mais que se afaste, não podemos ficar fora da sociedade mesmo que quisermos. Ficar longe de omelas muda tanto as coisas quanto continuar na cidade. Deixar de comer carne de animais mal tratados não vai salvar a vida deles pois eles continuam a ser consumidos. Enfim, o conto é uma obra de arte maravilhosa e tuas reflexões são pertinentes. Acho que não dá para fugir de omelas.

    ResponderExcluir
  3. Gostei do post e da analogia.
    Bj e fk c Deus
    Nana
    http://nanaeosamigosvirtuais.blogspot.com

    ResponderExcluir

Postar um comentário

ANTES DE COMENTAR:

Comentários anônimos, com Desconhecido ou Unknown no lugar do nome, em caixa alta, incompreensíveis ou com ofensas serão excluídos.

O mesmo vale para comentários:

- ofensivos e com ameaças;
- preconceituosos;
- misóginos;
- homo/lesbo/bi/transfóbicos;
- com palavrões e palavras de baixo calão;
- reaças.

A área de comentários não é a casa da mãe Joana, então tenha respeito, especialmente se for discordar do coleguinha. A autora não se responsabiliza por opiniões emitidas nos comentários. Essas opiniões não refletem necessariamente as da autoria do blog.

Form for Contact Page (Do not remove)