Não cobre, caminhe

Não cobre, caminhe



Dificilmente eu leio resenhas antes de ler um livro. Eu só leio depois, para ver se as pessoas viram coisas que eu não vi, quais foram suas percepções. Sempre tem algo que a gente pode aprender ao ver a visão do outro a respeito de alguma coisa. Nem sempre concordo com os apontamentos, mas busco entender o posicionamento da pessoa e suas críticas. A gente nunca concorda 100% com nada, com livros não seria diferente, mas sempre tem algo para aprender.

Porém, tem uma cobrança que eu costumo ver em algumas resenhas. A pessoa se sente ofendida porque o enredo não a surpreendeu nem teve grandes reviravoltas como ela esperava que teria. Onde estão as surpresas, as conspirações, as mega viradas, super plot twists que nos deixam estupefatos? Bem... nem todo livro - e aí vale também para filmes, séries, quadrinhos - precisa de super mega foda plot twists carpados para ser gratificante. Será que caminhar com os personagens não é o suficiente? Aprender com eles? Se emocionar com eles?

Peguemos O Senhor dos Anéis, por exemplo. Frodo tem uma incrível jornada ao lado dos amigos. Ele quase morre, sente o peso da tarefa difícil que lhe foi imposta, se arrasta por quilômetros até Mordor, desconfiando da própria sombra, até de Sam, seu melhor amigo. Querem matá-lo, querem tirar o Um Anel dele, ele é atacado por todo o tipo de criatura, passa por todas as provações possíveis. Nós já sabemos que ele vai jogar o Um Anel em Mordor desde a primeira página ou a jornada dele não faria sentido. Não há aquela mega reviravolta e nós viajamos com a sociedade do anel desde o primeiro livro, sofrendo com Frodo, sabendo de praticamente tudo o que vai acontecer.

Essa jornada pela qual a personagem passa deveria ser gratificante. Lembro que quando li O Alquimista (e foi o único livro de Paulo Coelho que li), quando chegou ao final e o personagem encontrou o tal tesouro em joias e pedras preciosas, tudo aquilo parecia extremamente banal diante de toda a incrível jornada que ele percorreu, as coisas que viu, as pessoas que conheceu, a vida que viveu. Essa viagem com o personagem deveria nos ensinar algo também, o que torna o grande tesouro do final uma coisa sem tanta importância.

Vamos pensar na vida de uma pessoa comum, que nasce, cresce, estuda, arruma emprego, casa, tem filhos... A jornada dessa pessoa só ficaria interessante se na infância ela descobrisse um tesouro templário? Depois na adolescência ela desvenda uma conspiração nazista, em seguida ela ganha na Mega Sena, foge de sequestradores, descobre que é neto de um rei, faz contato com seres alienígenas... E a jornada dessa pessoa? Sua aprendizagem, sua vida? Como fica o caminho dessa pessoa? Sua vida é ignorada em nome das surpresas, do espanto, de algo que muitas vezes é inverossímil?

Vejo o mesmo problema com os spoilers. Tem gente exagerando quando se trata deles. Bloqueios em redes sociais, discussões públicas, gente se xingando, denunciando, silenciando, deixando de curtir fotos, por causa de um filme/série/livro que daqui poucos dias estará na boca do povo. Teve gente reclamando de spoilers de Os Dez Mandamentos. O que vale é apenas o elemento surpresa? Pelo visto sim. De repente, a jornada de Moisés não vale nada.

Ao acompanhar os personagens de um livro nós rimos, suamos, ficamos com medo, acompanhamos os pensamentos, por mais vis que eles sejam. Essa personificação deveria ser gratificante ao invés de alguns segundos de espanto. Quando li The Kiss of Deception, eu sofri junto da personagem, a princesa Lia, pois sua jornada e seu desenvolvimento são incríveis. Quem era o assassino, quem era o príncipe, se ela tem ou não o dom, ficaram em segundo plano, pois caminhar ao lado dela foi prazeroso. Pois algumas resenhas reclamavam que não havia surpresas no livro. Lembrando que este é o primeiro livro de uma trilogia... Será que cabem tantas surpresas e plot twists em três livros?

Quando assisti aos filmes de Jogos Vorazes no cinema, eu já tinha lido os livros. E me emocionei, chorei, ri e vibrei, mesmo sabendo do final, mesmo sabendo dos problemas e soluções dados pela autora. Não mudou minha experiência saber de tudo isso. Ao contrário, apenas enriqueceu. E todo mundo que estava no cinema comigo já tinha lido os livros e se emocionaram da mesma forma.

Gratifique-se com o caminho ao invés de esperar pelas surpresas da estrada. Dê as mãos com os personagens e sigam aquela trilha, sem esperar alguns segundos de espanto ou de horror, pois a vida não se resume a esses segundos, resume-se à estrada.

Até mais!

O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.

Mario Quintana


Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Muito bom teu texto, na jornada é que está o verdadeiro prazer e aprendizado, o final... é só isso mesmo, o final.

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  2. Quando começo um livro, muitas vezes já sei que tudo (ou, pelo menos, quase tudo) vai terminar bem. Mas, como você disse, muitas vezes a leitura está no prazer de descobrir o que os personagens vão fazer até lá: a surpresa está nas diferentes decisões que os personagens podem tomar para chegar a um mesmo resultado. O prazer está em vê-los sofrer, tomar as decisões erradas e se desenvolverem como personagens, ou de sentir o mesmo medo que eles sentiram quando acabam em situações de quase morte (mesmo que seja o protagonista e você saiba que o protagonista não vai morrer, pelo menos não até o final do livro, quando não vamos precisar mais dele para contar a história). Muitas vezes, nas minhas resenhas, comento que o final não foi daqueles que surpreende e o faz repensar toda a sua vida, mas foi coerente com a história, agradável (o que não significa que tenha sido necessariamente feliz), plausível dentro do universo do livro; ou seja, encaixou perfeitamente com o livro, e se fosse diferente, talvez não fosse tão bom.
    Em relação a plot twists, creio que cada história tenha sua demanda. Algumas demandam ação, outras demandam mais conflito psicológico (e consequentemente são, ou deveriam ser, mais focadas nos personagens). É papel do resenhista reconhecer se uma história não agradou porque o autor falhou em lhe dar aquilo que ela demandava ou se não agradou porque não é o tipo de livro que procurava.
    Em relação a surpresas, evito spoilers porque às vezes acho legal quando acontece uma coisa que você não esperava em momento algum (As Mentiras de Locke Lamora foi um livro assim), mas também gosto de reler (ou ver a adaptação) e, sabendo o que vai acontecer, reparar em todos os detalhes que culminaram nessa situação, que passaram desapercebidos talvez pela ansiedade em saber como termina a história. Ou às vezes releio simplesmente para rever um trecho de que gostei muito (porque essa é a vantagem dos livros, podemos reviver).
    Enfim, parabéns pelo post (e me desculpe pelo comentário longo, rs).

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  3. Ótimo texto! Terminei de ler hoje The Kiss of Deception e gostei muito. Acredito que como toda trilogia, o primeiro livro é sempre mais introdutório, para que o leitor se acostume com o universo ficcional, antes de jogar mil reviravoltas nele. Me surpreendi com a história.
    Abraços
    Blog do Ben Oliveira

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  4. Ótimo texto! Um livro não pode se resumir apenas às reviravoltas, e nem todos os enredos precisam destas para serem considerados bons. A jornada é o mais importante, tanto que livros e filmes com enredos semelhantes (leia-se a "jornada do herói/heroína) são produzidos às centenas e não deixam de ter leitores e públicos. Mudam-se condições, épocas e lugares, porém há elementos em comum em vários livros e filmes, e nem por isso as pessoas deixam de alugar, baixar, assistir, ler...

    E spoilers, dá para evitar se a pessoa não quer mesmo saber, porém não é preciso ter faniquitos se algum escapar, ainda mais em tempos de internet, não é?

    Abraços e ótima quinta-feira!

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  5. Engraçado, ainda nesta semana eu reclamei de um filme que era assim. Acho que tem a ver com expectativas. Em meio a tantas obras que seguem essa fórmula, eu acabo esperando isso de quase tudo. A questão é que quando não vem, pode tanto ser péssimo e decepcionante, como incrível, se a história conseguiu me cativar o suficiente.
    Mas teu texto me fez pensar mais sobre a vida do que sobre ficção. No fim, também fico esperando um ~plot twist~. Quando as coisas entram na mesmice, me pego pensando como é o momento disso - mas aí acontece na proporção pequena da gente: mudar de cidade, de ap, de emprego, ser promovido, começar um curso... Acho que é mesmo hora de dar mais valor à linearidade. :)

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  6. Oi, tudo bem?

    Me senti na obrigação de dizer algo. Concordo imensamente contigo. Lembro que recebi uma newsletter (não vou lembrar de quem) que dizia justamente isso: que não é necessário uma reviravolta para que uma história seja maravilhosa. O grande problema é que (e a news também defendia isso) as pessoas têm se desacostumado a um ritmo mais vagaroso e introspectivo, têm deixado de lado as reflexões que podemos fazer com a leitura, porque só esperam ação. Lembro que, quando li As Ondas, da Woolf, no começo desse ano senti muito isso. A narrativa parece conversar contigo no mesmo ritmo, não há nada que se sobressaia, além dos personagens e suas vidas. E fiquei pensando que foi justamente isso que fez este livro se tornar um marco na minha vida, numa época que eu precisei bastante me desacelerar e a me reencontrar.
    Há vários modos de se contar uma história e o fato de se ter uma reviravolta não significa que o livro não seja morno (senti bastante isso, por exemplo, em Se eu ficar - tanto é que até hoje me sinto relutante em ler outro romance da autora).
    Enfim, obrigada pelo texto, gostaria que mais leitores pudessem lê-lo e entendê-lo! :)

    Love, Nina.

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  7. Ai, eu concordo demais com seu texto. O pior de tudo é que nem sempre dá pra encaixar um grande choque ou virada durante uma jornada linear (não encontrei outra palavra), então corre o risco de enfraquecer a história e até mesmo os personagens kkkkkkkk

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