Gravidez, maternidade e ficção científica

Um tempo atrás fiz um post que falava da forma como reprodução e aborto foram tratados na ficção científica. Mas ainda não tinha falado nada a respeito da maternidade ou da gestação em si. Como ela é tratada na FC? Como isso aparece em enredos? Percebi que existe um certo padrão nas representações de mães e filhos em vários enredos ou então não existe nenhum. E não é um padrão bonito de se ver.

Gravidez, maternidade e ficção científica
Cena de Filhos da Esperança 

A discussão sobre maternidade e amamentação no mundo nerd entrou na roda das tretas da semana passada quando um conhecido e famoso podcast brasileiro tocou no assunto da amamentação rapidamente e os participantes expeliram as opiniões machistas de sempre. De "herança erótica da amamentação" até ser um ato "horroroso" de se ver. Quem quiser e tiver estômago, pode ver a transcrição da conversa no blog PacMãe (infelizmente fora do ar). Eles além de não enxergarem a amamentação como se deve, acham que existe um ~~instinto~~ do macho que o obriga a olhar para o peito de uma mulher nessa hora. E apelar para este tipo de argumento, do instinto, é o retrato de uma sociedade misógina que sempre culpará as mulheres pelas agressões que sofre e de que homens são animais que não conseguem se controlar.

Foi pensando na questão da maternidade que resolvi analisar a questão pelo viés da ficção científica. E fiquei surpresa, mas não chocada, ao ver o mesmo padrão sendo repetido em várias franquias. Um padrão de maternidade quase sempre centrado na gravidez não consentida. A partir daí parece que as crianças somem de vista, como se o único período de vida de um ser humano fosse apenas sua gestação e nascimento. E gestação não é algo novo na FC, ao contrário. Podemos ver uma bizarra forma de concepção através de Victor Frankenstein e sua criatura, de "gravidez masculina" com Alien, o Oitavo Passageiro, até à rainha alien sendo retirada do peito de Ellen Ripley em Alien 4.

Geralmente, a ficção científica trata a gravidez como algo não planejado. Ela apenas acontece. De repente começam as dores na hora em que ela menos pode parar e parir. Aí chega a hora do parto. A mulher fica na cama deitada berrando e suando, muitas vezes sem a companhia do pai da criança. E algumas até morrem (Padmé, oi). Essas mulheres não sofrem com nenhum sintoma clássico de gravidez antes disso - como náuseas, pés inchados, dores nas costas - nada. É como carregar um simbionte e não gerar um novo ser humano. Padmé Amidala foi a grávida mais irreal que já vi sendo retratada na ficção científica, carregando gêmeos com aquela barriguinha de gases.

Padme Amidala dando à luz a gêmeos.

Qual é o problema com isso? Simples, são irreais. São gestações completamente inexistentes, onde nada acontece, e de repente a criança nasce. Uma mãe com mais de um filho experienciou várias gestações. Cada uma foi diferente da outra, mas a FC ainda bate na mesma tecla de mais do mesmo quando o assunto é esse. E já falei outras vezes, não adianta o escritorzinho vir com o papo que ele não sabe como é ser uma mulher grávida. Essa incapacidade de empatia e de pesquisa é pura preguiça de quem está acostumado a escrever apenas sobre si mesmo.

Além de essas gestações idílicas, a concepção em si costuma ser sobrenatural e não consentida. Pensei em alguns exemplos aqui só para ilustrar o problema. A agente Scully, de Arquivo X, ficou estéril depois de sua abdução. De repente, ela aparece grávida. Vala Mal Doran, de Stargate SG-1, do nada, foi impregnada com um feto Ori, que nasceu e ficou adulta em questão de horas. Conselheira Troi, de Star Trek Nova Geração, ficou grávida do nada, deu à luz a um ser alienígena que queria entender a raça humana e que também tomou fermento e cresceu vertiginosamente rápido. Em Extant, Molly Woods volta para a Terra depois de uma missão de 13 meses no espaço e volta grávida de um ser alienígena.

Em A Cidade dos Amaldiçoados temos um dos casos mais bizarros de gravidez não consentida: uma cidade inteira desmaia por seis horas e, quando acordam, várias mulheres estão grávidas. O governo então propõe à essas mulheres que elas levem a gravidez adiante, oferecendo total assistência médica e bolsa em dinheiro para as famílias, desde que possam realizar exames e o acompanhamento desses bebês. Alguém aí lembrou do Bolsa-Estupro? As crianças são dotadas de poderes alienígenas e agem se dó nem piedade, até que os cidadãos e o governo se reúnem para combatê-los.

O que todas essas gestações têm em comum é que nenhuma delas consentiu. As mulheres foram forçadas à uma gravidez porque seus filhos tinham que cumprir um propósito. E dane-se a vontade e o corpo da mulher, dane-se sua autonomia. Em geral, os enredos perdem uma grande oportunidade de mostrar gravidez e gestação e, posteriormente, a maternidade como se deve. Não me lembro de ver nenhuma delas amamentando também.

Isso foi algo que, quando assisti Arquivo X, achei bem estranho. Scully mal amamenta seu bebê (acho que existe uma cena que sugere que ela está amamentando) e ele já aparece com mamadeira pouco depois, quando ela volta ao trabalho. Nos Estados Unidos, a licença não é remunerada, então Dana deve ter ficado pouco tempo com William e já precisou voltar. A série poderia ter criticado isso. Não fez.

As crianças de A Cidade dos Amaldiçoados

A própria posição do parto retratada em tantas franquias já mostra a falta de pesquisa e criatividade de escritores e roteiristas. O dito "parto normal", com a mulher totalmente deitada, não sofre variação. Partos de cócoras, na água, nem cesáreas, apesar dos pesares, nada disso aparece. E não se engane, não há humanização nesses partos. A mulher berra e sua como louca para a criança nascer e pronto, nasceu! A única versão humanizada de parto que vi foi no parto da major Kira, em Deep Space 9, com direito a doula, massagens e relaxamento antes do nascimento.

O modo como gravidez, maternidade, amamentação são retratados na ficção científica é o mesmo que temos no mundo real. Mulheres sendo consideradas meros receptáculos para bebês, que serão salvadores da humanidade ou da galáxia, onde sequer consentem a respeito da gestação. Seus corpos são tidos como horríveis e são meras ferramentas, que podem ser invadidas e deformadas pelo bel prazer de um ser superior. Os nascimentos são envoltos em sofrimento, dor e suor e depois não há amamentação, troca de fraldas, nada, o bebê some.

Essa ignorância poderia ser sanada. Além de ter mais mulheres e mães escrevendo, os homens deveriam, no mínimo, fazer uma pesquisa para suas obras. Pelo menos conversar com suas próprias mães, o que já garantiria uma visão da maternidade de alguém que passou pelo processo. Diante de tantos quadros como esse, não é de se espantar que mulheres grávidas e mães não se sintam bem representadas pela ficção científica.

Um bom exemplo de gravidez na ficção científica vem de Teyla Emmagan, de Stargate Atlantis. Teyla é líder dos Athosianos, uma guerreira, mas que tem um romance com um homem de seu povo e engravida. Ela fica dividida entre continuar trabalhando com a equipe do coronel Shepard ou se dedicar à gravidez. Temos uma mulher que está com as dúvidas sobre se dedicar ao seu trabalho, sobre como levar uma gravidez adiante e ser uma boa mãe em um mundo violento como aquele, e que se mostra ativa no enredo ao invés de desaparecer dele. Uma pena que a série terminou prematuramente sem mostrar seu desenvolvimento como mãe.

Temos também um bom exemplo em Star Trek Voyager, onde Naomi Wildman nasce na nave que está perdida no Quadrante Delta. Acompanhamos seu crescimento ao longo de alguns episódios, sua angústia pela mãe, acidentada com uma nave, os problemas de crescer em uma nave estelar sem outras crianças por perto. Não ficamos restritas ao seu parto, temos um acompanhamento dela e de sua mãe, as duas sozinhas numa nave perdida. Viu como não é difícil trabalhar com o tema?

Mães e gestantes também consomem ficção científica e precisam de melhor representação nos enredos. Já vimos o quanto eles falham, está na hora de acertarem.

Até mais!

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