Separar autor e obra é possível?

Este é um assunto muito difícil e eu não pretendo dar respostas neste post. Não cabe a mim interferir nos gostos nem impôr um ponto de vista, mas sim, eu gostaria que as pessoas pensassem nisso. Às vezes ficamos profundamente decepcionados ao descobrir que o autor ou autora de tal obra que a gente adora é um canalha, escroto, abusador, pedófilo e estuprador. E aí? O que a gente faz num caso desses?




Até pouco tempo atrás eu não considerava ser possível separar uma obra de seu autor. Nunca gostei de Woody Allen e as acusações pesadas sobre ele de pedofilia e assédio também fazem outras pessoas se afastarem dele. No entanto, quando atinge alguém de quem gostamos ou por quem temos admiração, a coisa muda de figura. E me vi nessa situação quando li acusações de abuso e assédio sexual da parte de Isaac Asimov e de pedofilia de Arthur C. Clarke.

Asimov é acusado por diversas mulheres de assédio sexual e há documentos retirados de anais de convenções de ficção científica onde os organizadores comentam, em tom de brincadeira, sobre as reclamações de algumas mulheres a respeito de sua "mania" de beliscar a bunda das mulheres que dele se aproximaram. Há um caso de uma mulher que disse que ele a enquadrou e encurralou numa parede para "verificar seus seios" e que ela foi avisada que "ele era assim mesmo".

A coisa ficou tão ridícula que chegaram a convidar Asimov para demonstrar, em uma convenção em 1962, como que beliscava a bunda de mulheres de maneira "respeitosa" e o organizador ainda se oferecia para selecionar mulheres bonitas para o evento. Asimov declinou do convite.

Isaac Asimov

Arthur C. Clarke tinha acusações de pedofilia, já morando em Colombo, no Sri Lanka. O governo do país, posteriormente, retirou as acusações sobre ele, alegando não haver provas contra o escritor. Mas, recentemente, um escândalo de pedofilia explodiu nos jornais ingleses quando um jornalista, ao cobrir uma rede de pedofilia para o The News of the World e depois para o Sunday Mirror recebeu uma orientação de seu editor de manter o nome de Clarke de fora da lista de acusados, por ser amigo dele. Graham Johnson, o jornalista, relata tudo em seu livro autobiográfico chamado Hack, onde as histórias de Clarke assediando meninos nunca veio à tona por causa de seu amigo Rupert Murdoch, que também era pedófilo.

Clarke negou todas as acusações, mas Johnson diz ter recebido uma declaração do próprio autor de que se o jovem estivesse na puberdade e estivesse gostando, não teria porque não ter sexo com ele. O autor disse que tais declarações eram mentirosas, porém nunca processou o jornal e morreu em 2008 em sua casa em Colombo. O escândalo de pedofilia, ao que dizem, vai além, chegando até mesmo a membros da família real inglesa.

Orson Scott Card, o autor de O Jogo do Exterminador, um livro clássico de ficção científica, é um conhecido homofóbico. Ele contribui ativamente para associações que são contra o casamento de homossexuais e alega até que eles não deveriam ter nenhum direito assegurado, defendendo leis que proíbam a sodomia. E, para finalizar, Marion Zimmer Bradley, consagrada autora de As Brumas de Avalon, tem pesadas acusações de abuso, assédio e estupro da parte da própria filha. Não apenas contra ela, mas seu marido, Walter Breen, que chegou a ser julgado por pedofilia, onde Marion testemunhou em defesa dele.

Arthur C. Clarke

Uma das principais lições do trágico século XX é: cuidado com os intelectuais. Eles devem ser vistos com especial desconfiança quando tentam oferecer aconselhamento coletivo. Acima de tudo, devemos lembrar daquilo que intelectuais habitualmente esquecem: que as pessoas importam mais do que os conselhos, e devem vir em primeiro lugar. O pior de todos os despotismos é a tirania insensível das ideias.

Paul Johnson

Estes quatro autores são famosos, suas obras são admiradas, lidas e bem avaliadas, transformadas em filmes, são usadas como ferramenta de estudo e de críticas. Eles possuem fãs pelo mundo todo e deixaram um importante legado na literatura. Como lidar com suas faces pessoais tão horríveis? Será que seus preconceitos e comportamentos estão em suas obras e a gente é que nunca percebeu? É possível ler um livro deles e ainda ter a cabeça tranquila?

Tem quem alegue que como três destes autores já morreram, não vem ao caso ficar discutindo sobre tais acusações. Mas temos que ter respeito às vítimas e temos que olhar para os fandoms de hoje. Estes comportamentos ainda existem. Mulheres, especialmente, são brutalmente rechaçadas de eventos e convenções, abusadas e ainda são acusadas de terem provocado. Mulheres que façam críticas a esse universo recebem ameaças de estupro, de morte e até a visita da SWAT em casa devido a acusações falsas de crime e posse de drogas. Não podemos ignorar as violências que ocorrem por conta da negligência de algumas pessoas.

Afinal, eu sinto vontade de ver o Ender’s Game no cinema, mas ao fazer isso, eu não estou dando dinheiro para um cara que vai reinvestir esse capital em impedir que dois caras se casem? Indo ao cinema ver um Polanski, eu não estou compactuando com o fato de que um cara que estuprou uma menina ainda está aí fora, solto, fazendo filmes? Por mais que a gente queira entender a obra em separado do autor, a gente pode ignorar as implicações práticas que a fruição dessa obra trazem para o mundo?

João Baldi Jr.

O que eu tenho feito? Sinceramente, eu não parei de ler Clarke. Asimov tem obras que admiro, mas nem tudo, e o estilo narrativo do Clarke me é mais aprazível. Acho que consigo lidar melhor com isso porque os dois já morreram. Sinto que não estou compactuando com eles para cometerem abusos por ler seus livros. Mas me compadeço das pessoas que foram vítimas deles. Eu tenho a consciência do que elas falam e do que eles faziam. Só que isso não me faz uma especialista no assunto. Não posso te obrigar a parar de ler Asimov, mas espero que todo mundo entenda do que ele é acusado.

Os seres humanos são passíveis de erros e de fazer coisas brutais e criminosas. Estes não são os únicos casos de autores cuja obra é genial, mas que na vida privada são irreconhecíveis. Alguns chegaram até mesmo a apoiar o regime nazista. Não podemos negar também a importância que essa produção cultural tem. Acredito que, no final, a consciência de cada um deva pesar entre o que acha certo e o errado. O que não podemos fazer é enterrar a cabeça na areia, achando que nossos ídolos e autores favoritos são isentos de comportamentos escrotos e criminosos.

Como lidar? Como você lida com isso?

Até mais.

Quando ignoramos o assédio e abuso, quando nós menosprezamos os esforços para criar políticas de assédio, quando respondemos a pessoas que falam mais sobre o seu próprio abuso e assédio, acusando-os de começar "linchamentos" e "caça às bruxas", estamos ensinando aos predadores que o fandom é um terreno seguro de caça. Estamos ensinando-lhes que eles serão protegidos, e suas vítimas serão sacrificadas para que possamos agarrar-nos a uma ilusão de inclusão.

Jim C. Hines



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Comentários

  1. Eu cheguei aqui pra fazer uma crítica ao seu discurso. Não apenas por esse texto mas por sua participação no Anticast também. Por favor, leia até o fim pra não parecer que eu estou fazendo uma defesa do autor. Bom, eu evitava muito ouvir esse episódio até hoje, mesmo porque eu já sabia da opinião dos participantes sobre o Asimov. O fato é que eu sempre achei muito desrespeitosa a forma como vocês diminuíam o autor em várias falas. Pois bem, eu sou grande fã do Asimov já à alguns anos, sempre recomendo para os amigos, a obra dele me colocou no mundo da ficção científica e, inclusive, me despertou para o munda da literatura, me mostrou que eu podia escreve. Dito isso, quero apontar dois momentos onde eu fiquei meio intrigado no que vocês disseram no podcast (Eu tô falando aqui porque não sei se o feedback ainda atinge os caras do Anticast, já que eles saíram do B9): Primeiro, teve uma hora em que vocês disseram que apenas dois textos do Asimov podem ser considerados bons, se eu não me engano "Os próprios deuses" e "Fundação". Acho isso um pouco injusto, pois até mesmo no começo da carreira ele tem livros como NigthFall que é um belo de um livro, sem contar contos ótimos como "A última pergunta".
    O outro ponto é o seguinte: "Ah a gente vai falar aqui mal do Asimov e os fãs vão vir com uma montanha de chorume" Acho que dizer isso me soou um tanto arrogante. Eu mesmo tô aqui super incomodado com tudo isso que vocês falaram. Já tinha repensado muito do que eu penso sobre Asimov só de conhecer vários autores através do Anticast, o China Miéville, ver muito o papel da mulher em foco, coisas que realmente alinham com o que eu pensamento. Agora mais ainda. Quer dizer, espero que tenha lido tudo e entendido que eu não vim fazer chorume mas agradecer pela coragem de expor esses fatos para o público de ficção científica do Brasil.
    Ps: fui te seguir no twitter e descobri que já seguia o blog a muito tempo, o que só confirma o compromisso do blog com a ficção científica. Parabéns!

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    1. Oi, Fael!

      Cara, sabe como eu fui parar na literatura de ficção científica? O primeiro livro que li que realmente me despertou pra esse incrível universo da FC? O Homem Bicentenário, do Asimov. Na época aquilo me causou uma impressão tão grande que tive que ler o livro de novo. Foi a partir deste livro que eu me apaixonei de vez pela FC e decidi me dedicar a ela.

      Quando li comentários sobre Asimov ser um escroto com as mulheres, fiquei bem chateada, pq né? Eu comecei a FC por ele e aquilo me pareceu uma afronta. Até então eu não separava autor de obra. Mas aí fui investigar o assunto e vi que não era só um boato, eram fatos comprovados em anais de convenções de FC, onde tiravam sarro do comportamento do Asimov... Fiquei profundamente decepcionada e tive que rever meu conceito de "autor e obra", afinal como eu podia gostar de um cara que fez isso?

      Eu não tenho bem uma resposta pra quem me perguntar se é possível separar ou não. Eu consigo lidar melhor com o assunto se o autor está morto, como é esse o caso. Mas tem gente que curte Woody Allen. Eu adoro Michael Jackson e ele tem aquelas pesadas acusações de pedofilia. Acho que nesses momentos temos que admitir que como humanos os autores e artistas são falíveis, são humanos, com seus podres e sua genialidade e é bem difícil fazer isso às vezes.

      Muito obrigada pelo comentário!

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  2. Eu não consigo separar, penso até que deveria ter essa capacidade, mas pra mim até o momento de não saber tudo vai bem, consigo admirar a obra, a partir do momento que eu descubro algo desse tipo, me sinto enojada sabe, perco todo o apreço pela obra, por mais genial que ela seja, me parece que perco toda a alegria de ler algo.
    Quando o autor está morto, talvez seja mais fácil lidar, você se compadece com as vítimas, mas sabe que aquele cara pelo menos não está andando por aí ganhando milhões e fingindo que está tudo bem.
    Mas quando o cara tá vivo, a coisa aperta. Como assistir Woody Allen, saber que ele continua lépido e faceiro ganhando milhões, sabendo que existe uma vítima por aí vendo que seu agressor nunca foi punido. Me parece cruel com a vítima continuar a admirar e consumir algo feito pelo agressor. É como se ela fosse na polícia registrar a queixa e dissessem pra ela que era bobagem.
    Por isso, acho que o meu distanciamento não chega nem a ser racional, é um nojo irracional mesmo que me faz deixar de lado. Da mesma forma, perdi muito do gosto da leitura pela quantidade de casos de violência sexual usadas como recurso narrativo, parece que o livro mais simples precisa ter uma vítima de violência sexual,hoje em dia só leio livros que sei que não vão usar essa temática, depois de perguntar pra quem leu se não tem.
    Não saio dizendo pra ninguém o que a pessoa deve ou não fazer, mas eu ainda não consegui separar uma coisa da outra e sinceramente fico triste quando as pessoas acham que dá pra separar quando o cara tá vivo. Mas a vida é assim mesmo, da minha parte não consumo nada que venha de um autor com acusações de abuso.

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  3. Até então eu não conhecia tais acusações contra os autores. Ponto importante a considerar.
    Mas acredito que é possível sim separar autor e obra, pessoa e produto.
    Por exemplo (e posso me equivocar, mas quem nunca, não é?), Johnny Depp possui personagens excelentes no cinema, gosto muito das atuações dele, mas considerando tudo o que já foi revelado sobre ele, eu não o admiro como pessoa. De fato, ele deve ser punido da devida forma que corresponda aos males que já cometeu às suas vítimas.

    Voltando sobre livros, eu particularmente não tenho posicionamento político, mas não simpatizo com o socialismo, comunismo e afins. Aqui é importante frisar que há o socialismo utópico e o científico (ou marxista). H.G. Wells é um autor que eu gosto muito e acho suas histórias muito agradáveis, e sei que ele sempre foi Socialista Utópico. Porém, apesar de não simpatizar com esse posicionamento político, eu consigo separar ele de suas obras.

    No caso do Asimov, com base no que li agora, não concordo com as atitudes que ele cometia; entretanto, reconheço que suas obras tiveram grande relevância no meio literário. Já em relação às personagens femininas, concordo que ele não sabe muito como desenvolve-las. No livro As Cavernas de Aço, a esposa do detetive Elijah Baley me pareceu muito "infantil" e "bobinha". Engraçado que, já li em vários lugares que ele era a favor da luta feminista.. então não sei o que acontecia na cabeça dele heuahea

    Acredito que vale a discussão e observar casos atuais em que isso aconteça/continuam acontecer.

    Abraços * - *

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  4. Estou lendo "As Brumas de Avalon" pela terceira vez, já faz anos que li pela primeira e confesso que sempre fui ignorante em relação à vida pessoal da autora.Hoje, ao pesquisar sobre ela, imaginando encontrar coisas incríveis, me deparei com os relatos de agressão, abuso e omissão cometidos contra sua própria filha. Foi um soco no estômago. Por mais racionais que tentemos ser, criamos uma ideia de perfeição ao redor daqueles que decidimos admirar. E esse artigo caiu como uma luva, nem acredito que encontrei essa reflexão logo após me decepcionar com uma autora que tanto admirava. Na verdade ainda não sei o que estou sentindo, só sei que fechei o livro e vou refletir sobre se consigo ou não separar autor e obra. Obrigada por clarear um pouco a escuridão que se instalou quando descobri coisas tão horríveis sobre alguém que escreveu uma história que até então serviu de inspiração para mim. Não sei o que concluir, mas seu texto já vai me ajudar a encontrar um caminho.

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