Ficção científica e as aventuras dos garotos brancos

Desde que a polêmica com o Hugo estourou eu venho acompanhado em portais gringos e nacionais o que vem sendo discutido. Infelizmente, quase tudo ainda está em inglês. Aqui pela terra brasilis parece que ninguém liga, desconhece, ou ambos. E até os escritores nacionais estão em um silêncio estrondoso, tirando raras exceções. Mas uma coisa que fica de lição sobre o assunto é que FC ainda é considerada uma aventura para os garotos brancos. E se você que não é um garoto branco quiser participar da brincadeira, será excluído.

Personagens masculinos brancos cis heteros everywhere.

Acho que é meio óbvio dizer que não há problema em ter aventuras com e para homens brancos cis heteros. Sempre que toco neste assunto aparece alguém pra vir com "ain, qual é o problema, ain heterofobia??", como se heterofobia existisse. O problema é ficar somente neste modelo, neste padrão, que vem dominado a ficção científica há décadas e que também dominou o Prêmio Hugo de 2015, um dos mais importantes prêmios de ficção científica e fantasia que existe. Sequestrar o prêmio para torná-lo "mais justo", porque um bando de gente que já tem tudo se sente discriminada, foi algo infantil e desonesto.

Desonesto no sentido dos motivos para isso, pois o sistema de nomeações do Hugo permite que as pessoas votem em quem quiser e indiquem quem quiser, desde que comprem as associações e se tornem membros. Ele é um prêmio que, apesar de não ser perfeito, foi feito com a intenção de tentar, veja bem, TENTAR, ser justo e avaliar o gosto do público.

E o que levou ao sequestro desse ano e sim, considero isso um sequestro? Nos últimos anos o prêmio vem sendo povoado por mulheres, por negros, por escritores da comunidade LGBT, que estão trazendo pautas para suas ficções que fujam das tradicionais aventuras da ficção científica mais clássica. São enredos que possuem personagens das minorias e nem sempre existe uma preocupação em defender uma pauta ou agenda da comunidade feminista, negra ou LGBT.

No entanto, não é isso o que Torgersen, Correia e Vox Day pensam. Na cabeça deles e de muitos escrotos sujeitos que os apoiam, o prêmio Hugo deixou de representar a "ficção científica de raiz", aquela com aventuras e exploração do espaço, para levantar bandeiras de esquerda e bandeiras de pessoas que, sem qualidade literária, estariam vendendo suas ideias por meio de seus livros e sendo indicados por isso ao Hugo. Desta maneira, eles acharam que eram melhor fazer o que fizeram e indicar aqueles livros QUE ELES ACHAM que representam a "ficção científica de raiz".

Acontece que a ficção científica SEMPRE foi dominada por obras de homens brancos cis heteros, que escreviam seus livros, novelas e contos para outros homens brancos cis heteros. O próprio prêmio Hugo foi dominado por eles por décadas. Se o público leitor começou a colocar livros no prêmio com uma maior representatividade, isso não é nenhum tipo de conspiração para exterminar homens brancos cis heteros da face do planeta, é um sinal de mudança de mentalidade e de mundo. As coisas evoluem, mentalidades mudam, direitos são adquiridos, a literatura, junto de outras vertentes da arte, acabam evoluindo com ela.

Se tem algo errado aqui é a mentalidade ultrapassada de escritores que acham que o mundo lhes deve algo. Eles se sentem discriminados por serem homens brancos cis heteros sendo que o mundo inteiro JÁ É DOMINADO POR ELES! Suas histórias, seus dramas, seus amores, suas lutas, suas naves, suas perseguições, suas aventuras estão o TEMPO TODO na TV, nos cinemas, nos livros, nas séries, nas HQs. Mas a cegueira intelectual e a desonestidade de quem acha que deve ser recompensado por isso fez com o prêmio Hugo virasse um palco para todo o tipo de absurdos.

Pra gente entender porque essa "luta" dos Sad e Rabbid Puppies é sem propósito, vamos voltar aos tempos dourados da ficção científica e das revistas de FC, e da forma como elas tratavam autores negros e mulheres. Desde que o gênero se popularizou (e muito disso por conta de Hugo Gernsback, que cunhou o termo ficção científica) que a FC é um clube do Bolinha. Por décadas, as únicas mulheres que fizeram sucesso nessa área precisaram publicar por pseudônimos ou abreviando seus nomes para não denotar gênero: C.L. Moore, Leigh Brackett, James Tiptree, Jr., são alguns exemplos. Até quem não fez isso, admitiu ter que usar um ponto de vista masculino em suas obras para conseguir editora.

Ursula K. LeGuin assim disse para a Paris Review:

Escrever era algo para o qual os homens fizeram as regras e eu nunca questionei. As mulheres que questionavam essas regras eram muito revolucionárias para que eu pudesse até mesmo conhecê-las. Então, eu tive que me ajustar ao mundo masculino da escrita e escrever como um homem, apresentando apenas um ponto de vista masculino. Meus primeiros livros são todos ambientados em um mundo dos homens.

Samuel R. Delany tem muito a dizer a respeito do fandom norte-americano de FC, já que ele é negro e gay. Isaac Asimov disse, quando Delany ganhou o Hugo em 1968, que ele ganhou por ser "Negro", um termo pejorativo, como nigger. Seus enredos tinham personagens negros e de origens diversas, em um grau de realidade e experiência que muitos leitores adoravam, como personagens de origens multiétnicas.

Samuel R. Delany
Samuel R. Delany

O editor da revista Analog, John W. Campbell, um dos mais influentes editores de ficção científica do século XX, disse que curtia sacudir a audiência com este tipo de enredo, mas um das obras de Delany, Nova, chegou a incomodar até mesmo a ele. Tudo porque ele acreditava que seus leitores "não conseguiriam se identificar com um protagonista negro", personagem este com origens norueguesas e senegalesas, e avisou ao agente de Delany sobre isso.

Campbell acabou se utilizando da desculpa do despreparo de seus leitores para ocultar seu racismo, pois em 1968, ele endossou a candidatura de um famoso segregacionista, George Wallace, para presidente. E antes disso, Campbell também publicou editoriais argumentando que a escravidão era um sistema perfeito para as sociedades pré-industriais e que uma das razões para o povo negro ter tanto problema em aceitar isso é que os negros não estariam fazendo um bom trabalho para disciplinar seu próprio povo (!). Delany precisou aceitar que suas publicações passassem pelo filtro de Campbell para poder ser publicado.

Se uma pessoa de tal relevância para alavancar tantos autores como Asimov, Sturgeon, Heinlein, Herbert, entre outros e que comandou as publicações em uma revista de grande circulação e importância para tantos jovens leitores pensava desta maneira, o que dizer dos leitores e, posteriormente, os escritores que cresceram vendo uma ficção científica pasteurizada pelos preconceitos de seus editores?

Star Trek Deep Space 9, spin off de sucesso da franquia original e, para mim, a mais subversiva de todas, explorou o racismo na ficção científica de maneira simplesmente genial, na figura de Benny Russel. E olha que Star Trek é um grande clube do Bolinha desde os anos 60. Benny Russel era uma identidade que o comandante da estação, Benjamin Sisko, adquiria quando recebia visões dos profetas. Benny era um escritor de ficção científica muito bom nos anos 50 e que queria mais espaço para publicar suas obras em uma famosa revista. Seus contos eram publicados, mas o editor era extremamente relutante em revelar que Benny era negro.

Benny Russel - Deep Space 9

Benny estava determinado a ter seus textos devidamente publicados com sua identidade racial à vista. Mas seus amigos, conhecidos e até sua noiva diziam que era perda de tempo lutar por isso, pois aquela era uma sociedade branca que não aceitava ler histórias escritas por um negro. Mas Benny rebatia, dizendo que a voz dos negros precisava ser ouvida. No fim, a tarefa o consume e o desconsola de tal forma, que Benny acaba parando em um hospital psiquiátrico.

Se o mundo não está preparado para uma mulher escritora - imagine o que aconteceria se ele soubesse que um negro é um escritor - corra para as colinas! É o fim da civilização!

Herbert (Quark) - DS9

O silêncio estrondoso que vejo de muitos escritores brasileiros é o que mais me entristece. E tem gente que acha que existe mesmo uma conspiração editorial para promover agendas das minorias e que o que foi feito no Hugo foi uma maneira de revidar. Eu não sei se choro ou se corto os pulsos com faquinha de rocambole. Ou os escritores nacionais não ligam a mínima para o que vem ocorrendo, ou no mínimo concordam com as ideias de quem fez isso.

Os apoiadores do sequestro do Hugo acham que a ficção científica de hoje perdeu a nostalgia e a diversão, pois ela ficou muito consciente socialmente e pretensiosa devido à uma "conspiração da esquerda" para doutrinar seus leitores e que a ficção científica tem que ser apolítica. Gente, isso já é caso para psiquiatra. Isso é fruto de uma histeria coletiva, no melhor estilo "os russos estão chegando!". A Guerra Fria acabou, minha gente. O trem do mundo passou e vocês ficaram na estação.

Dizer que a ficção científica é apolítica é fechar os olhos para todos os enredos em que homens brancos cis heteros são os guerreiros, os presidentes, os fundadores, os heróis, os libertadores, os soldados, os cientistas, os gênios criativos. É óbvio que eles vão enxergar chifre em cabeça de cavalo, eles não enxergam os próprios privilégios. E reconhecer os próprios privilégios é coisa para os fortes, para aqueles dotados de empatia.

E para mostrar bem como reconhecer os privilégios que possui é para poucos, este foi um comentário que vi numa discussão sobre a representatividade feminina em videogames e porque ela é importante:

Mas por que essa necessidade de se sentir representado?

Ou seja, o comentário mostra que a gente que pede por diversidade e representatividade não tem porque se sentir representado. Mas ele que está muitíssimo bem representando em TUDO, está questionando a importância disso. É fácil reclamar quando não é você que se sente frustrado e desanimado com uma produção cultural que te ignora, porque representatividade importa, empodera, diverte e significa, pois estabelece que todas as pessoas são seres humanos e, como tais, merecem respeito e boas histórias.

Foi como eu disse antes. A diversidade veio para ficar. E tudo o que foi feito antes não vai ser queimado numa mega fogueira em praça pública. Todos podem ter seu espaço, por que só eles querem os holofotes?

Até!

Bonus track:
Recomendo muito a leitura deste artigo (em inglês) e o podcast do AntiCast 178 – A Polêmica do Hugo Awards.

Sad Puppies, Rabid Chauvinists: Will Raging White Guys Succeed in Hijacking Sci-Fi’s Biggest Awards?

Comentários

  1. Realmente, para as pessoas que vivem e fazem parte do meio que é considerado normal e desejável, difícil entenderem a necessidade de representativa e valorização das minorias, daqueles que são diferentes e fora do "padrão".
    Posso dizer isso pois sou de pele escura, tenho baixa estatura e nascido no norte do Brasil e sempre sou tratado com desdém quando expresso minha insatisfação e reclamo do tratamento preconceituoso e ofensas travestida de "inocentes" brincadeiras dirigidas a esses grupos nos quais faço parte. Portanto, deste modo é, tremendamente, dificil fazer as pessoas aceitarem que tais comportamentos são nocivos e abalam a autoestima quando sempre se é associado a algo negativo e inferior.
    Dito isso, é óbvio que se em uma história de aventura com um enredo empolgante tivesse como protagonista alguém que tivesse um pouco de nossas características e comportamentos semelhantes ao nosso seria bastante positivo e traria um imensa injeção de ânimo para enfrentar as situação desagradáveis do nosso dia a dia.

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