Patenteando seres humanos

Vivemos em um mundo capitalista. Isso já sabemos. Mas será que podemos pôr preço em tudo? Bem, já vimos que sim, mesmo que seja ilegal. Quem não se lembra do rapaz chinês que vendeu um rim para comprar um iPad e um iPhone? Existe um embate no meio científico sobre a questão de registrar patentes em cima da vida. Até onde isso pode ir?

Patenteando seres humanos



O que é uma patente?
É uma concessão, oferecida pelo Estado, que garante ao titular a exclusividade de explorar sua criação comercialmente. Se você inventou algo inédito, deve patenteá-lo ou entregar para domínio público, como aconteceu com a World Wide Web. Porém, ele deve disponibilizar acesso público sobre os pontos essenciais do projeto. Os direitos exclusivos garantidos se referem ao direito de prevenção de outros fabricarem, usarem, venderem, disponibilizar ou importar a tal invenção. Patente não é algo novo. Podemos voltar até o século XV que já encontramos invenções patenteadas. E a ela tem uma duração, em geral 20 anos e cai em domínio público.

O que não pode ser patenteado?
Artigo 18 da Lei brasileira nº 9279/96 (Lei da Propriedade Industrial - LPI):

Art. 18 - Não são patenteáveis:
I - o que for contrário à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas;
II - as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico; e
III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8° e que não sejam mera descoberta.
Parágrafo único - Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.

A patente de genes humanos
Quando se fala em patente de genes humanos dá até um certo frio na barriga. Não sei quanto à você, mas eu pensei logo em Gattaca. Em grande parte do mundo, patentear genes é proibido, como na França que baniu a patente de genes. E nos Estados Unidos, até pouco tempo atrás, era possível requerer patentes sobre genes humanos isolados em laboratório. Isso, para as empresas, constituiria em um outro elemento, que precisou da ajuda do ser humano para surgir e que, portanto, caberia na lei de patentes.

Mas tudo isso mudou com uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em junho de 2013, que julgou se era legal fazer a patente de genes, sendo que eles eram fruto da evolução da vida ao longo de bilhões de anos e que não sofreram qualquer ajuda da mão humana:

Um segmento de DNA de origem natural é um produto da natureza e não pode ser patenteado simplesmente porque foi isolado, mas o DNA complementar pode ser patenteado porque não se produz de maneira natural.

Suprema Corte dos Estados Unidos

A treta toda, que levou à Suprema Corte tomar tal decisão, tem a ver com a empresa Myriad Genetics, que isolou e descobriu a função de alguns genes ligados aos cânceres de ovário e mama. Ela entrou com vários pedidos de patentes para conseguir a exclusividade sobre eles e seus testes genéticos, usados para descobrir se alguém teria predisposição genética para desenvolver a doença. Esta é a empresa que fabrica o teste que levou Angelina Jolie a realizar uma mastectomia dupla, seguida de reconstrução mamária. Segundo o teste para o gene BRCA1, ela teria 87% de chances de desenvolver um câncer de mama. Ele custa em torno de 3 a 4 mil dólares e está muito aquém da renda de muitas mulheres.

A questão é que não é porque você possui o gene que é certo que desenvolverá a doença. Admiro a força de Angelina por tomar tal decisão e certamente ela ficou assustada com o resultado e com medo de desamparar os filhos. Uma dupla mastectomia é uma cirurgia cara, demorada, delicada e ela deve se sentir mais segura desta maneira do que se passasse pelo tratamento convencional. Além disso, ela tem o histórico da mãe, que morreu jovem por conta de um câncer de mama. É o corpo dela, só ela pode legislar sobre ele.

Gattaca nos mostrou que a genética selecionou Vincent para trabalhar como faxineiro, mas seu sonho era ser astronauta. Essa seleção de quem pode fazer o que, com base apenas em seus genes, é justa? Ou somos muito mais do que um conjunto de genes predispostos? Somos também um produto do meio, portanto um gene defeituoso não pode selar nosso destino.

Mas aí entramos na questão capitalista da questão. A Myriad é a única fabricante do teste genético para o BRCA1. Imagine o quanto ela lucraria se os serviços públicos de saúde pelo mundo resolvessem oferecer o teste para a população. No Brasil, ele não está acessível pelo SUS justamente por conta do preço e pela exclusividade da patente da empresa. O Escritório de Patentes e Marcas Registradas dos Estados Unidos já registrou patentes sobre quase 20% do genoma humano, que contém cerca de 24 mil genes. Ou seja, são quase 5 mil genes, quase todos eles ligados ao câncer, que já estão sob o carimbo de alguma empresa. Só a empresa Incyte tem quase 10% do genoma humano.

Quando uma empresa patenteia um gene como o do câncer, por exemplo, uma universidade que esteja estudando as raízes genéticas do câncer precisará pagar para utilizá-lo. Como fica a liberdade científica e as descobertas se os cientistas tiverem que lutar nos tribunais para poderem levar adiante suas pesquisas? Como posso ter uma parte de mim patenteada? Como podemos pôr preço na vida humana? Tenho que frisar a "vida humana", já que com dinheiro você compra outros seres vivos. Em 1988, a Universidade Harvard patentou o OncoMouse, um camundongo geneticamente modificado para ter predisposição ao câncer, o que o tornou uma ferramenta para estudos laboratoriais da doença.

Mas o Canadá e a Europa não reconheceram a patente americana do ratinho. Empresas como a Myriad também tiveram seus privilégios de patentes diminuídos pelo continente europeu, com algumas patentes derrubadas. Mas nos Estados Unidos, tais patentes sobre genes de câncer impediram o desenvolvimento de testes mais baratos por outras empresas ou universidade sobre os genes BRCA1 e BRCA2, causadores do câncer de mama.

Proteger a produção intelectual é uma coisa. Colocar preço sobre genes e criar monopólios é outra. A Suprema Corte, que julgou uma ação coletiva contra a Myriad, acabou com 30 anos de patentes de genes humanos por entender que eles são fruto da natureza. Mas um camundongo com predisposição câncer? A inserção de um único gene neste animal já o torna propriedade de alguém? Então perceba que a decisão da Suprema Corte abre um leque muito maior de dúvidas sobre o valor da vida e a quem ela pertence. Desta forma, agora com esta decisão, se a empresa isolar um gene causador de uma doença grave, ele pode patentear o teste usado para identificá-lo, mas não pode ser dona do gene em si. E genes sintéticos, criados em laboratório, também estão livres para ganhar patente.

Quando Angelina anunciou ao mundo o que tinha feito, a Suprema Corte norte-americana ainda não tinha julgado o caso. E as ações da Myriad dispararam nas bolsas de valores. Coincidência? Teria Jolie sido usada como bode expiatório para favorecer à empresa detentora do genes causadores do câncer de mama? Difícil dizer... E difícil dizer também qual será o futuro da questão conforme a ciência e a genética avançam a passos largos. Talvez não tenhamos um cenário de Gattaca, mas fica aí a questão do moralmente aceitável sobre o economicamente explorado.

Até mais!

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